by Ginnungagap

Afirmar é não negar, mas não negar não é afirmar!! O contrário também é verdadeiro.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Biscoito ou bolacha?


Quero começar este artigo com uma pequena história que li há muitos anos como sendo da filosofia sufi e que não consegui encontrar, nem com o tio Google (achei uma parecida).

Certa vez, um grupo de homens se reuniu para encontrar a felicidade. Perto deles, estava o mestre do mal e um discípulo. O mestre do mal, então, disse ao discípulo: “Vamos levar estes homens à felicidade”. Assustado o discípulo perguntou: “Mas mestre, o que estes homens tem de especial para que o senhor os leve à felicidade”. “Nós descobriremos agora se eles têm”. Então, o mestre do mal pôs uma roupa metade verde, metade amarela e dirigiu-se ao grupo de homens, disposto a leva-los à felicidade. Aproximou-se e disse: “Eu sei o caminho para a felicidade, se quiserem alcança-la, basta me seguir”. Virou-se e começou a andar. Só que, quem o viu vestido de verde, passou a vê-lo de amarelo e vice-versa.  Os homens, então começaram a discutir se deveriam seguir o senhor de verde ou de amarelo e ficaram lá, parados, perdendo a chance de chegar à felicidade.

Essa história, para mim, resume muito bem nossa sociedade que vê, quase que exclusivamente, a forma e não o conteúdo. Houvessem os homens seguido o senhor, pouco importando a cor de sua roupa, teriam alcançado a felicidade.

Assim, dividimo-nos em negros e brancos, amarelos e vermelhos e todos os outros rótulos (gordos e magros, feios e belos, capazes e incapazes, a lista se estenderia por léguas), esquecendo-nos de que somos humanos, independentemente de nossas características. Afinal, podemos ser capazes para algumas coisas e incapazes para outras e assim por diante.

Entendo que esse tipo de visão onde a forma se sobrepõe ao conteúdo (quantas vezes, não ouvimos “você está certo(a), mas perdeu a razão pela forma como se expressou”?) faz com que discussões que poderiam ou deveriam ser meramente semânticas, acabem por se transformar em obstáculos ao bom senso e à boa convivência, muitas vezes, por má intenção de quem se envolve na discussão. É o que chamo de A semântica em desfavor do bom senso.

Afinal, o que são as palavras senão a forma daquilo que querem significar? Quantas palavras não têm (ou tiveram ao longo do tempo) seu significado alterado e até invertido. Quantas vezes, a ironia não se faz presente?

Vou falar aqui sobre exemplos polêmicos e sérios, de grande amplitude, nos quais, em minha visão, a semântica foi usada de forma ardilosa e até mal-intencionada para se atingir um objetivo ou vencer uma disputa. Três exemplos relacionados à inclusão e ao preconceito.

(Parêntese longo: Cabe observar que, às vezes, rótulos são criados e determinadas idéias ou projetos são abandonados ou jogados fora, sem que se entenda direito o que significavam. Um bom exemplo é o “kit gay”. Rótulo colado pela bancada evangélica num projeto de combate à homofobia e que foi um dos grandes pilares da eleição do atual presidente. Houve um material preparado para professores? Sim, houve. Só que não era e nunca foi objetivo do projeto levar conteúdo impróprio para crianças, mas o rótulo aliado ao livro “fake” carregado à tiracolo pelo então candidato e exibido em horário nobre em rede nacional, sem ser desmentido, levou milhões a acreditarem numa falácia! Fim do parêntese).

O primeiro exemplo vem de um um ótimo artigo de Neivia Justa, que li noutro dia onde, ela (e já vi muitas outras pessoas fazendo o mesmo) questiona e aponta como racista a expressão “a coisa está preta”. Então, nos comentários do artigo, pontuei que filosoficamente, utiliza-se, não raro, o contraste entre luz e trevas, entre claridade e escuridão, por exemplo, as trevas da ignorância em contraponto à luz do conhecimento. Por definição a cor do escuro é o preto e a cor do claro é o branco. Eu nunca fiz uma leitura racial da expressão “a coisa está preta” e suas variações. Penso que os negros merecem reparação histórica pelo que sofreram, penso que o racismo está longe de acabar, não só no Brasil como no mundo de uma forma geral, mas penso que enxergar no “preto” de “a coisa está preta” um demérito aos negros seja “forçar a barra”. Como resolvemos este dilema? É uma questão semântica apenas?

O segundo exemplo é o do “casamento gay”. Ora, eu sou defensor ferrenho da possibilidade da união entre pessoas do mesmo sexo, de que possam adquirir propriedades em conjunto sem que, na eventualidade da morte de uma das pessoas, sua família não venha tomar da outra todos os bens adquiridos em conjunto, porque estão no nome de quem faleceu. Pensemos, contudo, que: casamento é um sacramento “de propriedade” das religiões (como diria o palestrante Waldez Ludwig) “desde Adão e Eva”, daí que, brigar pelo “casamento gay” é, numa visão que penso ser bastante pertinente, brigar para que as religiões aceitem e abençoem esta união. Uma luta inglória. Não se pode exigir que uma religião altere seus dogmas (concordando-se com eles ou não). Por que não se utilizar uma expressão que seria menos polêmica como “União civil” ou “Parceria civil”? Entendo que seja má intenção daqueles que propositalmente querem criticar a religião (o que é um “tiro no pé”) ou dos que desejam criticar a própria união em si.

O último exemplo que quero citar é mais complicado, também relativo às pessoas LGBT, é a “cura gay”. Senão vejamos: “ser gay” não é uma doença (eu acredito nisso e defendo isso), por outro lado, eu entendo que ninguém pode impedir (minha opinião!!) um psicanalista (psicólogo, psiquiatra) de ajudar alguém que, não nos interessa por qual motivo, queira deixar de ter sentimentos e desejos homossexuais tampouco se pode impedir uma pessoa de pedir este tipo de auxílio.  O rótulo “cura” leva à implicação semântica da oposição à doença e, por isso, gera o conflito.

(Outro parêntese longo:  Por favor, não se zanguem comigo aqueles que (como eu!!) são totalmente contra a LGBT-fobia, não sei que nome dar a este tipo de tratamento. Certamente, penso que “terapia de reversão sexual” também não seja palatável, mas é menos agressivo do que “cura gay”.

Cabe a pergunta aqui: “Por que precisamos de um rótulo?”. Por que não “apoio às pessoas que querem deixar de sentir desejos, para elas, incompatíveis com seu gênero?” essas pessoas não têm esse direito? (em último caso, o que se faz entre as paredes do consultório é problema do paciente e do analista, não é? Claro, salvo se o segundo abusar do primeiro! Aí será, certamente,  problema da Justiça).

E se alguém hétero resolver pedir auxílio a um psicólogo para se tornar trans? Pois é, sinto-me mal por levantar um argumento – talvez – típico dos “conservadores de plantão”, caindo no dilema de meu último artigo. Mas penso que a questão precisa ser avaliada por vários ângulos.

Esse tópico é longo. Psicólogos são proibidos de oferecer esta ajuda (e, neste ponto, eu concordo: atender a um pedido em particular é uma coisa, “propagandear” é outra!). Há alguns anos, alguns mais conservadores conseguiram uma autorização, cassada há poucos dias.

Só para deixar bem claro: Entristece-me que muitas pessoas (sei lá, ainda que 100% das pessoas que) busquem(buscam) esse tipo de tratamento de “reversão”, (o façam) por motivo de pressão da sociedade ou de “ideologia de credo”, mas, não interessa a mim, não cabe a mim, fazer “pressão ao contrário”, nem na pessoa, nem no psicólogo que se disponha a ajuda-la. Ao contrário, essa pressão pode – quem sabe? – reforçar o discurso débil da “ditadura gay” –não vou entrar no mérito desse rótulo aqui! Fim do parêntese). 

Novamente, usar esta expressão (“cura gay”, não se perca em minha prolixidade) é, penso eu, má intenção de quem quer impedir os psicólogos e aqueles que se sentem incomodados com sua condição de agirem para interrompê-la ou daqueles que fazem questão de afirmar que esta condição é uma doença (aqui, o “tiro no pé”).

Eu poderia citar muitos outros exemplos menos polêmicos, exemplos cotidianos, em que uma discussão que é semântica (todos querem dizer coisas diferentes, mas querem utilizar a mesma palavra para defini-las ou, ao contrário, querem usar palavras diferentes para definir a mesma coisa) acaba por criar um impasse insolúvel, uma cizânia desnecessária, um obstáculo ao bom senso e à boa convivência.

Como bônus, trago uma reflexão adicional. Um vídeo do canal Jesus na veia do Youtube (não conheço o canal, só vi este vídeo) em que um Ganês, preto (quem vir o vídeo entenderá), que traz uma ideia muito boa e uma comparação entre os termos negro e preto. É só semântica?

Afinal, é bolacha ou biscoito??

Fique bem